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O culpado da violência contra a mulher é sempre o agressor?

O Brasil está entre os países com maior índice de homicídios femininos, ocupando a quinta posição em um ranking com 83 nações, segundo dados do Mapa da Violência 2015 (Cebela/Flacso), que revelou ainda que, do total de feminicídios registrados em 2013 no país, 33,2% dos homicidas eram parceiros ou ex-parceiros das vítimas. Para a professora Karla de Souza Torres, da Unidade do Centro Federal de Formação Tecnológica de Curvelo, que desenvolve pesquisas sobre igualdade de gênero e é coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Gênero e Diversidade Sexual (NEGED), apesar de avanços no debate sobre o feminismo, as mulheres no Brasil continuam sendo vítimas de constantes ataques. Embora haja variações, a violência afeta todas as classes sociais. A repercussão estimula o debate sobre a violência contra a mulher, no entanto, enquanto a sociedade não evoluir e perceber que o único culpado da violência é o próprio agressor, acredito que a discussão tende a caminhar em círculos e não levar realmente à solução do problema. A professora concedeu uma entrevista ao site do CEFET-MG para falar sobre o tema.

Quais os principais tipos de violência praticados contra a mulher no Brasil atualmente? Dentre esses, muito se tem noticiado sobre o feminicídio. O que é e em que contexto ele acontece?

A Lei Maria da Penha, n° 11.340, define cinco tipos de violência: física, que é ferir e causar danos ao corpo com tapas, empurrões e outros; patrimonial, destruição de bens materiais, objetos, documentos etc.; sexual, quando o agressor obriga a vítima, a presenciar, manter ou a participar de relação sexual não desejada; moral, conduta que caracterize calúnia, difamação ou injúria; e psicológica ou emocional, caracterizada por conduta que resulte em dano emocional, como a diminuição da autoestima, coação, humilhações etc. Feminicídio é o assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher. Suas motivações mais comuns são o ódio, o desprezo ou o sentimento de perda do controle e da propriedade sobre elas, comuns em sociedades marcadas pelo machismo (a ideia de que o homem é superior à mulher) e pela misoginia (ódio contra a mulher). No Brasil, o cenário que mais preocupa é o do feminicídio cometido por parceiro íntimo, em contexto de violência doméstica e familiar, e que geralmente é precedido por outras formas de violência e, portanto, poderia ser evitado.

Recentemente, dois casos de violência contra a mulher tiveram repercussão nacional, o de Três Corações (MG), em que um homem agride verbal e fisicamente uma segurança de um clube; e o de Campinas (SP), no qual o desfecho foi a morte de 12 pessoas de uma mesma família, sendo que o alvo principal era a ex-mulher do assassino. Até que ponto, em sua opinião, a repercussão de casos como esses na mídia e nas redes sociais contribui ou não para se discutir a violência contra a mulher?

Infelizmente, casos como esses acontecem o tempo inteiro em nosso país, e é ainda mais triste ver como a sociedade resiste em perceber que a raiz desses tipos de problemas é o machismo e a misoginia. Uma compreensão equivocada e injusta de que homens têm direitos sobre o corpo e a vida da mulher. No dia 12 de janeiro, um policial matou a ex-namorada em São Paulo com 14 tiros por não aceitar o fim da relação entre eles. Esse é só mais um de tantos casos de feminicídio muitas vezes tratados como ?crimes passionais?, chegando até a serem romantizados pela mídia, e não como o que realmente são, casos extremos de machismo e misoginia. E quando crimes como esses repercutem na mídia e nas redes sociais, muito ainda se discute sobre a culpabilidade da vítima: o que fez contra o agressor, como era sua vida sexual, como se comportava, vestia, agia, etc. Como se de alguma forma atrocidades como essas pudessem ser justificadas.

O Brasil está entre os países com maior índice de homicídios femininos. O que cada um de nós pode fazer para reduzir esses dados?

Ao presenciarmos uma violência contra a mulher, devemos realizar uma denúncia na Central de Atendimento à Mulher, discando 180, ou por meio do aplicativo ?Clique 180?. Existem outros aplicativos que auxiliam no combate à violência contra a mulher, como o ?Chega de Fiufiu?, uma plataforma colaborativa que permite mapear os pontos de risco para mulheres em todo o Brasil. Na medida do possível, também devemos oferecer apoio à vítima, deixando claro que ela não está sozinha. Nunca se deve julgar a mulher que permanece em uma relação violenta, mas procurar entendê-la e ajudá-la a sair da situação. Sem segurança e sem apoio, isso é muito difícil.

Qual a importância de se abordar e debater sobre esse tema nas instituições de ensino? Quais trabalhos podem ser desenvolvidos com os jovens para minimizar as ocorrências de casos de violência contra a mulher?

A necessidade é gritante e urgente. Somente com a educação e o diálogo sobre igualdade de gênero desde as fases iniciais da infância é possível prevenir a violência. Quando a violência de gênero acontece nas escolas e não é debatida e solucionada apropriadamente, crianças e adolescentes são impedidas de desenvolver seu potencial intelectual, gerando casos de depressão, agravando a situação da gravidez na adolescência e atrapalhando a prevenção das doenças sexualmente transmissíveis. Trabalhar a igualdade de gênero nas escolas pode envolver atividades bem simples. Estimular que as crianças se divirtam juntas, sem fazer distinção entre elas, sem impor que brinquem com brinquedos e atividades separadas pelo gênero; promover rodas de conversa sobre assuntos polêmicos, debates sobre filmes, livros, imagens, etc.; realizar dinâmicas e brincadeiras que desconstruam papéis culturais, são coisas que podem ser desenvolvidas na prática, de maneira fluida.

No caso da mulher que é agredida pelo companheiro ou por alguém da própria família, é possível que ela identifique sinais de que ali está um possível agressor?

Sim. Em geral existe o chamado Ciclo de Violência, que é uma forma muito comum da violência se manifestar, geralmente entre casais. O ciclo começa com a fase da tensão, em que raivas, insultos e ameaças vão se acumulando. Em seguida, a agressão, com o descontrole e uma violenta explosão de toda a tensão acumulada. Depois, o fazer as pazes, em que há o pedido de perdão e a promessa de mudança de comportamento, ou então finge que nada aconteceu, mas fica mais calmo e carinhoso e a mulher acredita que aquilo não vai mais acontecer. Esse ciclo costuma se repetir, com episódios de violência cada vez mais graves e intervalo menor entre as fases. A maioria dos casos que terminam em morte ou agressões graves tem início com ameaças e atitudes que visam anular a autonomia da mulher, como crises exageradas de ciúmes e o desejo de controlar o que veste, com quem fala e aonde vai.

A recente ascensão de um discurso conservador no Brasil, para você, tem contribuído ou endossado atos de violência contra a mulher?

Acredito que sim. Entendo o discurso conservador como aquele que defende o status quo, ou seja, a manutenção da situação existente ou o retorno a tradições e costumes de ordem estabelecida. O contexto de família tradicional define papéis fixos para os gêneros e se apoia na figura do patriarca tanto para estabelecer relações particulares quanto para ostentar figuras de liderança, reforçando a superioridade masculina e a submissão da mulher. O discurso conservador, principalmente o de fundo religioso, naturaliza o ?papel da mulher? como cuidadora e sem autonomia do seu próprio corpo. Esse conservadorismo mantém valores historicamente construídos, como o machismo, a homofobia, o preconceito de classe, o preconceito étnico e é ameaçado pela emergência de posturas políticas desconstrutoras de alguns dos valores que se quer conservar. Nesse aspecto, a ascensão de um discurso conservador pode contribuir e endossar atos de violência contra a mulher por estimular a punição de mulheres que não se conformam em adotar um papel social tradicional.

A Lei Maria da Penha, instituída em 2006, foi criada no Brasil com o intuito de coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Em sua opinião, houve avanços no rigor das punições dos crimes domésticos? Quais as lacunas da lei e o que precisa ser melhorado?

Sim. A autora da lei, a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) ressaltou que, nesses 10 anos, as pessoas passaram a confiar na possibilidade de serem protegidas. Levantou números como 300 mil vidas salvas, 90 mil prisões em flagrante e o aumento, de 2014 para 2015, das detenções, especialmente em função de uma forte campanha do Ligue 180, canal de denúncias. Nesses 10 anos, a lei contribuiu com a diminuição de cerca de 10% na taxa de homicídios contra as mulheres dentro das residências, segundo levantamento divulgado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea). Foram muitos os avanços construídos, a começar pela mudança de olhar sobre a questão de gênero que, antes da lei, era algo quase que invisível em nossos comportamentos. A partir daí, foram construídas políticas públicas, como a criação de juizados e varas especializadas para o processo e julgamento de casos de violência doméstica contra a mulher, delegacias especializadas, casas-abrigo e parcerias para a construção da autonomia financeira da mulher, entre outras. E ainda conseguimos avançar em relação ao reconhecimento da necessidade de reeducação e de tratamento do homem que se envolveu em situação de violência doméstica. Entretanto, um dos maiores problemas, abordados na própria lei, é a necessidade de se reeducar o agressor, justamente para evitar que a violência se reproduza em outros espaços e relacionamentos. É necessário ainda que seja dada prioridade a criação de casas-abrigo/passagem, a instalação de mais juizados e varas especializadas e de mais delegacias de polícia especializadas. Neste caso, imprescindível que sejam disponibilizados espaços adequados, implementado o atendimento 24 horas e em fins de semana e feriados, o que é uma raridade no nosso país, infelizmente. Inclusive, porque a delegacia ainda é a principal porta de entrada dessas mulheres, que, muitas vezes, lá comparecem imediatamente após ser violadas em seus direitos humanos. Ou seja, em situação de total vulnerabilidade. E se o acolhimento inicial falhar, ela não vai acreditar que a lei é capaz de protegê-la.

Qual o papel do NEGED no que tange às discussões sobre violência contra a mulher? Onde acontecem os encontros do NEGED e quem pode participar das discussões do Núcleo?

Dentre os principais objetivos do NEGED estão "promover o diálogo sobre gênero no ambiente acadêmico, propor políticas, programas, projetos e atividades que promovam a equidade de gênero e contribuir para a promoção da educação não sexista na Instituição". Nesse contexto, temos promovido atividades e campanhas que discutem o machismo e a equidade de gênero, como exposição de vídeos, campanha contra o assédio sexual e gincana de igualdade de gênero em que discentes do nível superior e técnico participam de atividades que visam fomentar a discussão e a sensibilidade para o assunto. Os encontros hoje acontecem somente na Unidade Curvelo, mas a ideia é que cada Unidade tenha seu próprio NEGED local para que haja descentralização e democratização das discussões. Qualquer pessoa da comunidade interna ou externa do CEFET-MG pode participar dos encontros. Contato: negedcefet@gmail.com.

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