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Há 103 anos nascia o poeta Padre Celso de Carvalho

Ele nos legou, dentre outras joias, a beleza de “Estas Ruas Serpeantes”

Por Newton Vieira*

Quem me conhece sabe o quanto venero a memória desse meu mestre e amigo. Sacerdote, filósofo, poeta, trovador, biógrafo, professor dotado de esplêndido enciclopedismo didático, o Padre Doutor Celso de Carvalho (1913-2000), na foto com Elói Faria, Delém e eu, era daqueles seres humanos que somente de raro em raro surgem entre os mortais comuns.
Neste sábado, celebram-se os 103 anos do nascimento dele, em Curvelo, na Fazenda São Sebastião.
Para homenageá-lo, divido com vocês um pouco do que senti ao reler “Estas Ruas Serpeantes”, de autoria dele. Então vamos lá.

ESTAS RUAS SERPEANTES
Em 1992, vem a lume “Estas Ruas Serpeantes” (Artes Gráficas Politipo), com ilustrações (bicos de pena) de Elena Dumont Flecha. O livro é, a meu ver, a mais bela narrativa da história das ruas, avenidas, becos, igrejas de Diamantina. Nele a linguagem atrai a partir do título. O adjetivo “serpeante” está ligado aos verbos serpear, serpejar, serpentear e serpentar. São da ordem dos chamados verbos imitativos. Exprimem ação imitativa da qualidade ou estado inerente ao ser designado pelos substantivos dos quais derivam. Enriquecem o texto. Dão-lhe colorido especial. Dependendo das circunstâncias, funcionam como tropos de estilo. Alpheu Tersariol, em “O Estudo dos Verbos” (S. Paulo, LISA, 1980, p. 223), classifica-os como sinônimos dos onomatopaicos, “por abrangerem ainda as vozes dos animais ou o som dos objetos”. Borboletear vem de borboleta, pavonear vem de pavão e serpear vem de serpente. Na verdade, as ruas de Diamantina, “semeadas sem traçado”, assemelham-se muito aos ofídios, pelo excesso de curvas e o constante sobe-desce. “Estas Ruas Serpeantes”, portanto, não é um título qualquer. É verdadeiro achado poético.
E as ruas de Diamantina não sobem e descem sem quê nem para quê. O poeta descobriu-lhes o segredo:

“Estas ruas serpeantes,
é tão fácil entendê-las:
descem doidas por diamantes,
sobem ávidas de estrelas”.

Como J. G. de Araújo Jorge, Padre Celso fala, numa sequência de três trovas, do surgimento da saudade brasileira, como algo trazido pelos navegadores lusitanos e os negros da África, com o banzo que podia até matar:

“O zum-zum-zum das procelas
e “lá no meio do mar”
vem das lusas caravelas
que tardavam a chegar?”

“Ou vem do banzo nascido
já no navio negreiro,
ante o sofrer pressentido
do porto do cativeiro?”

“Ficou na gente a saudade
de um porto que a vida esconde
nos longes da imensidade,
nas ilhas do não-sei-onde...”

Personagens da História, a exemplo da rainha do Tejuco, desfilam à sua frente como se, num passe de mágica, o tempo dos contratadores de diamantes fosse agora:

“– Nessa liteira tão rica,
quem vai passando? Um dos grandes?
– Não! Uma escrava... É a Chica,
a paixão de João Fernandes.”

Tudo lhe transmite lições da vida pretérita. Não seria diferente com as humildes pedras das ruas:

“Pedras tão gastas... tão lisas...
– Mercês... Macau... Luz... ou Glória –
não é em pedras que pisas,
mas em retalhos de história.”

E o bom humor, tão característico do poeta e usado inicialmente como lenitivo para os horrores da II Grande Guerra, conflito a que ele assistiu de perto quando apoiou espiritualmente os homens da FEB na Europa, também ressuma de alguns versos da obra em apreço:

“Francamente, pouco importa
quando o povo chocarreia
que a Rua Direita é torta
e a Bonfim dá na cadeia!”

“Rua íngreme, empinada,
é aquilo que mais se vê.
E mais de uma é chamada
de quebra não sei o quê.”

Evitou, na segunda quadra, o emprego da expressão “Quebra-Bunda” (risos).

“Estas Ruas Serpeantes”, trabalho no qual a poesia reluz como diamante na bateia, também revela um Padre Celso mais aberto à inovação da linguagem, capaz de fazer coro com Carlos Drummond de Andrade (“Tinha uma pedra no meio do caminho”) e empregar o verbo ter como impessoal, no lugar de haver ou existir, embora ele não tenha esquecido o recurso das aspas:

“Mas todo o mundo bem sabe,
e é cada vez mais sabido:
até que o mundo se acabe
“terá” tesouro escondido.”

********.
Chama a atenção o fato de “Estas Ruas Serpeantes”, obra-prima, ter sido escrito depois de o poeta amargar a deficiência na visão. Se bem que o convívio com o sofrimento não tenha o costume de interferir negativamente nas criações dos gênios.
Eduardo Frieiro considerava “fora de dúvida” a influência benéfica do sofrimento “na vida da imaginação” (cf. “A Ilusão Literária” –  BH/Brasília, Itatiaia/INL/Fundação Pró-Memória, 1983, p. 118). Justificava-se com o depoimento do doutor René Tatin, para quem o manancial do lirismo de Lamartine achava-se nas entranhas de alucinante padecer: “Desde que o mal se afastava, o grande poeta não era mais que um historiador, um filósofo, um gentil-homem”.
De fato, ao longo da História, o tormento parece acompanhar as pessoas de inteligência acima da média, aguçando-lhe os sentidos e mesmo as percepções extrassensoriais. Foi assim com Homero, Camões, Tasso, Milton. E quem não se emociona com a disformidade de Aleijadinho, a surdez de Bethoven, a gangrena de Vivaldi, a epilepsia de Machado, a paranoia de Maupassant, o derrame de Lúcio Cardoso, a orfandade de Olegário Mariano? E Dostoiévski? Não é incrível que ele se sinta recém-nascido depois de enfermo? O autor de “Os Irmãos Karamazov” escreveu a Andrey: “Sei que já não posso durar muito e, no entanto, longe de querer morrer, sinto-me como se apenas agora tivesse começado a viver. Não me sinto nada exausto da vida...” (Apud David Magarshack. “Dostoiévski”  - Tradução de Antônio Gonçalves - Lisboa (Portugal), Editorial Aster, s. d., p. 312). Santo Agostinho, nas “Confissões” (Livro VII, cap. 8. Tradução de J. Oliveira Santos, S.J., e A. Ambrósio de Pina, S. J. São Paulo, Abril Cultural, 1980, p. 115), alude à existência aparentemente contraditória de “dores salutares”:  “O meu tumor decrescia – confessava o bispo de Hipona – ao contato da mão oculta da vossa medicina. A vista perturbada e entenebrecida da minha inteligência melhorava, de dia para dia, com o colírio das minhas dores salutares”. Se Agostinho fala em dores salutares, Nietzsche, o filósofo do “über-mensch”, não hesitou em falar numa “débil vitalidade”. No “Ecce Homo”, relata: “... foi precisamente nos anos da minha mais débil vitalidade que eu cessei de ser pessimista; a necessidade instintiva de restabelecer-me afastou-me da filosofia da miséria e do desânimo...”. Antes, Nietzsche havia assegurado que “para um homem realmente são a moléstia pode ser, pelo contrário, um enérgico incitamento para viver e viver mais intensamente” (tradução de Pietro Nassetti. Martin Claret Editora, SP, 2000, p. 39). O pintor Van Gogh, numa carta a seu irmão, admite: “Quanto mais caio aos pedaços, quanto mais inválido e fraco me sinto, tanto mais artista me torno, pois, graças à doença, concebo ideias em profusão para trabalhar” (Apud Fülöp-Miller, René. “Os santos que abalaram o mundo”, 7ª ed. Tradução de Oscar Mendes. Rio, José Olímpio, 1968, p. 311).
Padre Celso era da têmpera desses gigantes do saber e da cultura. Viveu, como eu ia dizendo, o drama de Jorge Luís Borges e Papini. Aos poucos, foi perdendo a visão. Por fim, quase nada enxergava. A secretária, Glauciene de Jesus Bento, fazia-lhe a leitura das correspondências e dos livros recebidos. Criou-se uma situação difícil e desalentadora. Um leitor e pesquisador dos mais vorazes privado da capacidade de saciar a própria sede de conhecimento.
Mas o Trovador da Saudade não se chamava Celso (alto, elevado) à toa. E era de Carvalho, a árvore resistente – ‘semper vivens, semper virens’. Não se quebrava ao deparar a adversidade. Ao revés: diante do sofrimento espargia muito mais lucidez. Aliás, em “Estrelas Cadentes”, ele já havia escrito:

“Se a luz dos olhos definha,
a da alma é mais fulgente:
o Sol que morre à tardinha
mais além é Sol nascente...”

Em Padre Celso, a cegueira dos olhos transformava-se agostinianamente em colírio para a visão do espírito, corroborando uma verdade perfilhada nas “Páginas Esparsas” do cientista Hilton Rocha, mestre dos mestres da oftalmologia: “Para ver as cores basta ter olhos; para sentir o colorido é preciso ter alma”. E esta outra verdade de enorme lindeza apregoada em “Ave, Palavra” (Quemadmodum), de João Guimarães Rosa: “O horizonte é o fechado de uma pálpebra”.
Ah! Quanta falta faz o poetamigo! Vou passar seu aniversário com a saudade serpeando no peito...

*Membro da Academia Internacional de Letras ALPAS 21 em Porto Alegre - RS

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