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Olhos nos olhos de Narciso


Uma ex-aluna, que encontro por acaso, recorda a maneira como eu a advertia contra sua compulsão de olhar-se no espelho, durante as aulas: através do mito de Narciso, o jovem grego de extraordinária beleza que, tendo recusado o amor das ninfas (deusas dos rios e dos campos), foi condenado a apaixonar-se pelo reflexo da própria imagem no espelho d´água. 

Uma história puxa outra: uma das ninfas, cuja paixão foi desprezada por Narciso, se chamava Eco. Ela tinha o dom de uma voz maviosa e usava seu talento para distrair a esposa de Zeus, enquanto ele se divertia com as ninfas de sua corte: por isso foi castigada pela deusa traída com a perda da própria palavra, passando apenas a repetir o que ouvia dos outros. Desprezada por Narciso, Eco afinal se uniu a ele no cumprimento de uma mesma pena: a da repetição. Narciso foi condenado à repetição da imagem, Eco à repetição do som. 

Enquanto isso, não muito longe da mistificação, mas bem distante dos Mitos, em nossa aldeia global, a praga da repetição parece ter infestado a cultura de massas, através da mídia audiovisual. Ora, como o Homem não é aquele que repete, mas aquele que diz a sua palavra, o efeito dessa praga é nos tornar um tanto menos humanos. 

A nossa sorte é que o mundo real dos humanos não é regido pelo signo da tragédia, como na mitologia; além disso, por felicidade, a História só se repete como paródia e nem toda repetição é má. Como o colesterol, existe a boa e a má repetição. Segundo Roland Barthes, a boa repetição é a que vem do nosso corpo e a má repetição, a doxa, é a que vem do corpo dos Mortos: das tradições retrógradas, das instituições mumificadas, dos códigos caducos, das matrizes dos preconceitos. Contra a má repetição, Bertrand Russel propôs, em seu livro “Let the People Think”, que as escolas “ensinem a arte de ler com incredulidade os jornais”. E as redes sociais, podemos acrescentar. 

Sobre o distúrbio do narcisismo e sobre Narciso, que achava feio tudo o que não era espelho, compus recentemente três pequenos poemas, que compartilho aqui:
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NARCISSUS

Narciso se desfaz: que se esvai
a forma do amor, náufrago ego
no espelho d´água dos olhos
em ponto cego.

Narciso se refaz: transfeito em flor,
amor se mira no árdego alterego
que paralisa o girassol
em ponto cego.
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NARCISO E ECO

Narciso não se vê. No espelho d´água
Naufraga o amor, preso nas linhas
Dos círculos concêntricos das ondas
E atado ao lastro do ego:
Nas margens quebra seu canto de cisne,
Que Narciso desfeito se faz
Eco.
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NARCISO

narciso sem espelho:
peixe fora d´água 
náufrago em si mesmo


Afonso Guerra-Baião


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