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O leitor da fábula


Por graça do amor alguém é capaz de ouvir e entender estrelas. Por dádiva fabulosa da textualidade, o poeta pode traduzir a linguagem dos animais. Noite dessas sonhei que tinha esse dom e me vi enredado no cenário de uma fábula. Como um discreto figurante, eu me posto a um canto da cena, enquanto anoto os diálogos dos protagonistas, o Cordeiro e o Lobo. 

- Seu moleque, diz o Lobo, como é que você ousa sujar a água que estou bebendo?
- Calma, seu Lobo, responde o Cordeiro, como posso sujar sua água se bebo num ponto mais abaixo na correnteza?
Lá no meu canto, eu me abaixo pra escapar das fagulhas que saltam do olhar fulminante do Lobo.
- Mas você agita muito as águas. E no passado andou agitando as massas, espalhando boatos maldosos a meu respeito no meio da plebe ignara.
- Não pode ser, seu Lobo, eu ainda sou muito novo...
Agora eu me escondo atrás de uma árvore para fugir dos perdigotos que pulam da bocarra cheia de dentes do Lobo.
- Se não foi você, foi seu irmão.
- Mas, seu Lobo, eu sou filho único...
- Então foi seu pai!
- Seu Lobo, eu nunca conheci meu pai!
Posso ver até as amígdalas na goela escancarada do lobão faminto.
- Então foi alguém que mora em sua casa.
- Eu vivo aqui no campo, ao ar livre, seu Lobo!
- Conheço bem o truque de sua família: primeiro suja a água, depois corta a água, depois compra barato a terra do vizinho! 
- Eu não sou dono de terra, seu Lobo!
A carranca do lobo até me faz tremer, cá no meu canto.
- Ah! Eu sabia! Você é um sem-terra, um invasor, um comunista que não respeita a propriedade privada!
- Não sei do que o senhor está falando!
- Não se faça de bobo! Você é um corpo estranho que polui as águas e o ambiente...  
- O senhor pode ver que eu bebo sem pisar no curso d´água, eu preservo a água e a pastagem para o bem de todos!
- Estou vendo: você é um desses ambientalistas abelhudos, que vivem de infernizar a vida dos produtores rurais!
- Seu Lobo, eu penso que...
- Ah, então você é um pensador, poluidor de mentes, criando caos, destruindo a ordem estabelecida para reinar depois.
- Eu sou apenas um cordeiro...
- Certo! E eu sou um lobo faminto! 
- Minha mãe tem deliciosas receitas vegetarianas, se o senhor...
- Calado! Antes que você tenha tempo de infestar o ambiente e mudar o enredo da história, eu vou te engolir!

Quando o Lobo avança sobre o Cordeiro, a desajeitada mão, com que escrevo a bico de pena, derrama o tinteiro, cobrindo a página com providencial blackout. O gesto acidental do observador se torna intervenção autoral: com o mata-borrão faço surgir estrelas no céu noturno da página, como metáforas de roteiros para novas narrativas. Se formos capazes de ouvir e entender estrelas, nós, os animais, saberemos que somos e não somos, bebemos e não bebemos do mesmo rio e que “no meio do maior perigo é da palavra poética que vem a esperança”. 

Você já leu hoje uma fábula de Esopo, um fragmento de Heráclito ou um verso de Holderlin?

Afonso Guerra-Baião


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